julho 24, 2006

FRANCISCO DE OLIVEIRA É ENTREVISTADO PELA FOLHA DE S.PAULO DE 24-07-06

Para Oliveira, as causas dessa mudança estariam na perda de autonomia dos governos sobre a economia nacional e na quebra das identidades de classe

A política interna se tornou irrelevante, diz sociólogo

"O PSOL ESTÁ em busca de uma miragem." Quem afirma é Francisco de Oliveira, 72, professor titular aposentado de sociologia da USP e um dos fundadores do partido, após ter se desligado, em 2003, do PT, sigla que também ajudara a formar. Oliveira afirma que a candidata do partido à Presidência da República, Heloísa Helena, "não deve passar dos 15%" e que, mesmo em candidaturas futuras, o PSOL não tem condições de vir a se tornar um partido capaz "sequer de pautar a política brasileira".

Francisco de Oliveira, que atuou na fundação do PSOL e na do PT

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR DE BRASIL

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"A única coisa que o PSOL pode fazer [na política nacional] é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica", afirma Francisco de Oliveira. Não se trata de incapacidade específica da legenda, mas da constatação, ele diz, de que a política se tornou completamente irrelevante. Entre as causas deste fato, para ele incontornável, estão a financeirização da economia -que tira a autonomia de decisões dos governos nacionais- e a quebra das identidades de classe e sua representação em partidos políticos -também decorrente das transformações recentes do capitalismo. Na entrevista a seguir, Oliveira relaciona o Bolsa-Família e a política de cotas para negros a esse fim da política e diz que o PT pós-Lula pode ter o mesmo destino do peronismo argentino -com a criação de grupos gangsterizados que disputariam o espólio da penetração política e simbólica, a partir de programas sociais, entre os mais pobres. O sociólogo relaciona ainda o crescimento da facção criminosa PCC e os recentes ataques em São Paulo ao desenvolvimento do capitalismo no país, que, de acordo com ele, funciona em parte na ilegalidade e "não respeita nenhuma institucionalidade". A seguir, trechos da conversa, realizada em seu escritório, em São Paulo.


FOLHA - Como o sr. vê a subida de Heloísa Helena no Datafolha? Como o sr. vê suas chances eleitorais?

FRANCISCO DE OLIVEIRA - Ela pode crescer mais alguns pontos, mas não para passar dos 15%. Não acredito. O eleitorado que vai votar em Heloísa é fácil de se presumir. São ex-petistas, desiludidos com o PT, e, de outro lado, gente não necessariamente partidarizada decepcionada com o governo Lula ou que acha que o Alckmin não é nada. É nessa faixa que ela navega e vai crescer no máximo até 15%.

FOLHA - O sr. fazia a avaliação, já há algum tempo, de que havia um esgotamento da política, de sua capacidade de representar possibilidade de mudança. O sr. acha que a candidatura dela e o PSOL podem representar uma saída para isso?

OLIVEIRA - Seria desejável, mas eu não acredito. O fenômeno da irrelevância da política é muito profundo. A candidatura agora, ou outra do PSOL repetida no futuro, será uma espécie de desafogo, mas com muito poucas chances de ser majoritária e muito poucas chances de tornar-se hegemônica e sobretudo de pautar politicamente. Os partidos não têm noção das raízes dessa irrelevância da política. Nem o PSOL. Ele imagina que pode refazer um partido tal como o PT foi na sua origem.

FOLHA - Não há possíveis semelhanças entre Heloísa Helena e o Lula nos anos 80?

OLIVEIRA - Apesar de tudo, não há nenhuma semelhança entre os dois partidos. No sentido de bases e de poder pautar a política brasileira. O PT pautou. A única coisa que o PSOL pode fazer é ser uma espécie de Grilo Falante, uma espécie de consciência crítica, mas sem possibilidades de hegemonia, sem possibilidades sequer de pautar a política brasileira. Essa é uma conclusão muito dura, para mim mesmo e para os militantes em geral. É preciso pesquisar as razões da irrelevância da política hoje, e não só no Brasil. Aqui, isso tem um efeito devastador. Aqui, o fundo da irrelevância da política é a desigualdade. Não é mais plausível, para nenhum de nós, que você possa, por meio da política, atravessar o Rubicão. Não é mais possível. A formação do PT foi algo muito específico. É preciso não esquecer que ele se formou dentro da ditadura, com um movimento sindical em ascensão, numa espécie de eco de um Estado de Bem-Estar privatizado. Trabalhadores de certos ramos, sobretudo do metalúrgico, tinham planos de benefícios muito importantes. Era privatizado porque eram as empresas que davam. Esse movimento estava em ascensão -não como agora, que está em refluxo. E é importante não esquecer que aconteceu simultâneo a um movimento de democratização muito importante. Foi dentro desse movimento que o PT nasceu. Esse conjunto é irrepetível. As forças sindicais foram muito desgastadas. A queda de sindicalização é vertical. Os petroleiros foram arrasados pelo Fernando Henrique Cardoso. Além disso há um movimento de reestruturação produtiva, misturado à globalização, que devastou as fileiras do operariado. Não tem a conjuntura e a estrutura de forças que fizeram o PT. O movimento sindical, tal como o conhecemos, e tal como ele formou a pauta social e política dos anos 70, não existe mais. Aquele tipo de movimento sindical não existe mais e não existirá. O PSOL está, portanto, em busca de uma miragem.

FOLHA - Há alguma relação entre isso que o sr. descreve e o governo Lula?

OLIVEIRA - Tomem a última declaração de bens de Lula. A metade de seu patrimônio está em aplicações financeiras. O paradoxo é que ele está à testa de um governo que endivida o país, e essa dívida é parte do seu patrimônio. É a cobra mordendo o próprio rabo. É apenas emblemático. Onde ele aplica? Como não é um especulador da bolsa, provavelmente em títulos da dívida pública. Não é só o Lula. Quem tiver um pouco de dinheiro vai fazer a mesma coisa. Ele aumenta o patrimônio graças ao endividamento do governo que preside. Sua posição política é completamente irrelevante. Faça o que fizer, está amarrado nessa financeirização do Estado. Isso não começou com ele, evidentemente. Seu governo até faz um esforço de reduzir a relação da dívida com o PIB. Com o Fernando Henrique, isso foi de 1 para 10. Isso financeirizou a economia e amarrou-a às determinações de fora. Este é o fator principal da irrelevância da política. Todas as relações sociais estão mediadas agora pela relação externa. A política interna perdeu a capacidade de dirigir a sociedade. Qualquer que seja a relação, ela tem que passar pelas relações externas. Isso quebra na espinha a política. Política é escolha. Política é opção. Mais ou menos, todos agora têm que seguir a mesma regra.

FOLHA - O sr. não reconhece nenhum mérito na política social do governo Lula, no Bolsa-Família? O sr. chegou a dizer que Lula exclui os trabalhadores da política, quando perguntado sobre o programa e as possíveis relações entre Lula e Getúlio Vargas.

OLIVEIRA - As analogias entre Lula e Getúlio estão sendo propagandeadas aos quatro ventos. Até ele, quando líder sindical contrário a todas as criações sindicais da era varguista, até Lula agora quer se identificar com o Getúlio. Reafirmo: são antípodas. Lula não tem nada que ver com Getúlio. É o oposto. Lula não é populista, porque ele não faz o movimento de incluir o proletariado na política -ele faz o movimento de excluí-lo. Como é que pode? Pode no momento em que todas as medidas do governo são contra a centralidade do trabalho na política.

O Bolsa-Família é algo que se pode entender a partir da irrelevância da política. Não adianta dizer que é assistencialista -isso é óbvio. De forma pedante, poderíamos dizer que o Bolsa-Família é uma criação foucaultiana. Um instrumento de controle, em primeiro lugar. Restaura uma espécie de clientelismo que não leva à política.


Ela passa a ser determinada não por opções, mas pela "raça". Não é raça em termos raciais, é a "raça" da classe. É pelas suas carências que você é classificado perante o Estado. A política se constrói pelas carências. Então é abominável. Seria cínico dizer que é uma porcaria total, porque tem gente que come por causa do Bolsa-Família. Do outro lado, é isso. É a morte da política. Acabou a história de você depender das relações de força, das relações de classe para desenhar as políticas sociais. Elas são desenhadas agora por uma espécie de dispositivo foucaultiano. Quanto você tem de renda, qual é o seu estatuto de miserável, aí a política é desenhada. É uma clara regressão.

FOLHA - Não é mais desenhada a partir de direitos universais.

OLIVEIRA - De jeito nenhum. É um dispositivo. Da mesma forma que as cotas, que as ações afirmativas. É também um dispositivo. É o paradoxo. É uma antipolítica na forma de uma política. Porque a desigualdade é tão abissal no Brasil que é difícil você resistir que é preciso um estatuto especial para você tratar da questão racial. Vejo a questão das cotas no mesmo registro que o Bolsa-Família. É uma biopolítica. As relações sociais não suportam mais uma política que na verdade envolva escolhas, opções e política. Seu substituto é um dispositivo foucaultiano.

FOLHA - Qual a função do PT hoje? Ele foi um catalisador de demandas nas últimas décadas.

OLIVEIRA - O papel transformador do PT se esgotou. As razões são essas [da irrelevância da política]. O PT ficou dependente de Lula e não vai se libertar nunca mais. Talvez o PT tenha o destino do peronismo. Com essa política do Bolsa-Família, ele vai muito fundo, até as camadas mais pobres. E isso provavelmente fique como um legado para o PT pós-Lula. O que é extremamente perigoso, porque o partido peronista pós-Perón se tornou uma confederação de gangues. Eles se matam entre si. Eu não descarto esse cenário para o PT.

FOLHA - Grupos internos disputando um espólio?

OLIVEIRA - Que é o peronismo. É isso. Grupos que disputam um espólio, numa luta interna que é um fenômeno extraordinário. A diferença do peronismo em relação a outras experiências chamadas populistas é que ele foi fundo. A ponto de visitarmos o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e o túmulo de Evita ter flores novas todos os dias. Chegaram aos mais pobres dos pobres. Isso o PT faz por meio do Bolsa-Família. Mas a aura transformadora do PT se foi, como no próprio peronismo.

FOLHA - Como isso que o sr. chama de esgotamento da política se liga com o dia-a-dia brasileiro, com a violência urbana, por exemplo?

OLIVEIRA - É algo muito sério. É o rabo do rnitorrinco, que surgiu agora. Um sinal de que o capitalismo periférico não respeita nenhuma institucionalidade. Ele está se lixando para elas. A institucionalidade criada nos últimos dois séculos não agüenta o capitalismo periférico. Ela é incapaz de regular os conflitos postos pela marcha forçada do capitalismo periférico. Por todos os lados que você olhe, é tudo furado. Não tem uma regra que possa ser obedecida durante três meses. Nenhuma. Em qualquer atividade econômica. Tudo ultrapassa a regra institucional.
Por causa de sua velocidade. O pesado imposto que ele impõe para você acompanhar a marcha. O Brasil não tem condição de acompanhá-la. Eu fico espantado. A velocidade dessa espécie de remodelação permanente é espantável.
Isso desbarata qualquer regra. E aí vem o pior, que são os vasos comunicantes. A fronteira entre o legal e o ilegal acabou. Não existe. Estabeleceu-se um sistema de vasos comunicantes, e o PCC está no meio disso tudo. Deve estar no meio de altos negócios. Trata-se de uma questão de negócios.

julho 17, 2006

Taxa de câmbio, emprego e renda, por YOSHIAKI NAKANO (FOLHA DE SÃO PAULO DE 16-07-06)

AS ATUAIS políticas monetária e cambial estão enterrando as esperanças de milhões de brasileiros de obter emprego e renda, que são as grandes demandas da população. A sobreapreciação cambial [DÓLAR BAIXO] é um problema gravíssimo e será de difícil solução no atual quadro internacional.

Aqueles que defendem a atual política argumentam que a sobrevalorização cambial [DÓLAR BAIXO] eleva o salário real dos trabalhadores, enquanto a depreciação cambial [DÓLAR ALTO] o reduz. Existem algumas falácias [ENGANO, ARDIL] que precisam ser apontadas e esclarecer que, numa visão dinâmica, há uma relação positiva entre taxa de câmbio competitiva [ALTO PARA ESTIMULAR A EXPORTAÇÃO], aumento de produtividade e elevação persistente do salário real dos trabalhadores.

Não há evidência empírica de que o salário dos trabalhadores brasileiros tenha sido impactado positivamente pela forte apreciação cambial [BAIXA DO DÓLAR] nos últimos três anos. Numa economia como a brasileira, com elevado nível de desemprego, há evidência de que no momento da forte apreciação cambial [BAIXA DO DÓLAR] , em 2004, a rotatividade no emprego aumentou e, aparentemente, houve queda nos níveis intermediários da escala de salário, enquanto na base houve ganho, provavelmente em razão do aumento do salário mínimo, e não da apreciação cambial [DÓLAR BAIXO].

É verdade que a depreciação cambial [DÓLAR ALTO], ao elevar os preços dos bens "tradables"[comerciável, negociável], reduz o salário real dos trabalhadores. Mas essa queda ocorre uma única vez e no curto prazo. Numa visão dinâmica e de longo prazo, a relação é oposta. Taxas de câmbio depreciadas [DÓLAR ALTO] e competitivas, ao aumentarem as exportações, geram emprego, aumento de produtividade e aumento persistente de salário real.

Vejamos duas experiências históricas, do Japão e da China, analisadas por Ronald McKinnon. O Japão, para reconstruir o estoque de capital destruído pela guerra e reempregar seus trabalhadores, desvalorizou o iene [VALORIZOU O DÓLAR] e manteve fixo o câmbio em 360 ienes por dólar de 1951 a 1971 para que as exportações dessem início ao processo de crescimento. Nesse período, o crescimento anual médio do PIB foi de 9,45% ao ano, a produtividade do trabalho aumentou 8,92% anuais, e o salário, 10% ao ano.

Nos EUA, nesse mesmo período, a produtividade do trabalho cresceu 4,5%, e o salário, 2,55%. Da mesma forma, a China, para absorver milhões de trabalhadores desempregados ou subempregados, desvalorizou o câmbio [VALORIZOU O DÓLAR] de 5,5 yuans para 8,7 yuans por dólar e, em seguida, estabilizou a taxa desde 1994. Desde então, até 2004, a produtividade do trabalho e o salário vêm crescendo à média anual de 12,3% e cerca de 13%, respectivamente.

Esses dados se comparam com os EUA, onde a produtividade e o salários aumentaram 2,7% e 3%, respectivamente. Vale lembrar que, no caso do Japão, a apreciação subseqüente [DÓLAR BAIXO] do iene desembocou na deflação e na estagnação dos anos 90.

Os dados mostram não apenas o papel fundamental da taxa de câmbio competitiva e estável para deslanchar o processo de crescimento forte e sustentado, associado ao aumento de produtividade e estabilidade de preços, mas o aumento de salário como mecanismo natural para equilibrar a competitividade internacional.

Em outras palavras, numa visão dinâmica, a depreciação cambial [DÓLAR ALTO] está relacionada ao aumento do emprego, da produtividade e do rendimento dos trabalhadores, que constituem a essência do processo de desenvolvimento.

YOSHIAKI NAKANO , 61, diretor da Escola de Economia de São Paulo da FGV (Fundação Getulio Vargas), foi secretário da Fazenda do Estado de São Paulo no governo Mario Covas (1995-2001). Passa a escrever neste espaço, mensalmente, aos domingos.